Mago respirou fundo. Abriu
o nariz e encheu o peito de ar ou de luar, não podia saber ao certo, porque a
noite era uma mistura de brisa e claridade. Mas fosse de frescura ou de luz a
onda que bebera dum trago, de tal modo o inundou, que em todo o corpo lhe
correu logo um frêmito de vida nova. Esticou-se então por inteiro, firmado nas
quatro patas, arqueou o lombo, e deixou-se ficar assim alguns instantes, só músculos, tendões e
nervos, com os ossos a ranger de cabo a rabo. Arre, que não podia mais! Aquele
mormaço da sala dava cabo dele. Punha-o mole, sem ação, bambo e morno como o
cobertor de papa onde dormia. A que baixezas a gente pode chegar! Ah, mas tinha
de acabar semelhante vergonha! Não pensasse lá agora a senhora D. Maria da
Glória Sância que estava disposto a deixar-se perder para sempre no seu regaço
macio de solteirona. Não faltava mais nada! De resto, ali tinha já a primeira
demonstração: ela a ressonar sozinha na cama fofa, enquanto ele enchia os
pulmões de oxigênio e de liberdade. É certo que a deixara primeiro adormecer, e
só então, brandamente, deslizara dos seus braços para o tapete e do tapete para
a rua, através do postigo da cozinha. Uma questão de delicadeza, apenas.
Porque, afinal, não havia vantagem nenhuma em fazer as coisas à bruta e ofender
quem só lhe queria bem... Que diabo, sempre era a D. Maria Sância, a que até um
fio de oiro lhe comprara para o pescoço! Que, considerando bem, por essas e por
outras é que chegara àquela linda situação...
– Ouvi dizer que já nem sardinhas
comes?!
– Essa agora! É todos os dias...
– E que nunca mais caçaste?!
– Ainda esta manhã...
Piadinhas do Lambão. É
claro que os mimos de D. Sância lhe haviam deformado o gosto... Metia-lhe os
petiscos ao focinho, tentava-se! E havia por onde escolher, de mais a mais!
Quanto a ratos, que necessidade tinha de perder o tempo, debruçado três horas
sobre um buraco, sem mexer sequer a menina dos olhos, à espera dum pobre diabo
qualquer que ressonava lá no fundo? Deixá-los viver! As coisas são o que são.
Em todo o caso, ainda comia a sua pescada crua e deitava honradamente a mão a
uma ou outra borboleta branca, sem falar nas andorinhas novas e nos pardalecos
que filava por desfastio na primavera. Que demônio! Mais seria exagerar.
– Mas que não sais de casa, sempre
agarrado às saias...
Na verdade, saía pouco.
Outros tempos, outros hábitos. Banqueteava-se e ficava-se pelas almofadas...
Digestões difíceis, vinha-lhe um migalho de sonolência... Às vezes tentava
reagir. Mas o raio da velha, mal o via pôr o pé na soleira da porta, perdia a
cabeça! Parecia uma sineta:
– Mago! Mago! Bicho, bichinho!
Regressava aos lençóis,
claro. Contrariado, evidentemente. Mas quê! Era o pão... O pãozinho da boca!
Que remédio senão torcer caminho e, com as unhas discretamente recolhidas,
continuar as carícias de algodão em rama no cachaço da dona...
– E que deixaste a Faísca!...
– Eu?!
– Que anda metida com o Zimbro... Pelo
menos é o que consta. Que teve até cinco pequenos dele...
– Meus! Muito meus! Do meu sangue!
Pantominice. Um triste
chanato na honra do convento. Paleio de chavelhudo manso... a ninhada pertencia
inteirinha ao Zimbro. Até pela pinta se via. Todos com o mesmo olhinho remeloso
do pai... Um parrana, realmente, embora o não confessasse. Os mimos de D.
Sância tinham-no desgraçado. Ah, mas a coisa ia mudar de figura! Estava farto
de ser desfeiteado. Ainda há bem pouco tempo... Chegara-se ao pé da mulher,
disposto a impor sua autoridade.
– Ouve lá: disseram-se que mos andas a
pôr para aí com todo mundo?!
E recebe esta pelas
ventas:
– Bem haja eu!
– Bem hajas tu?!
– Nunca guardei respeito a maricas!
Só a tiro! Mas a verdade é
que a Faísca tinha razão. Lá de ano a ano é que vinha procurá-la, e isto de
gado fêmeo quer assistência.
Além disso, pesadão,
desconsolado. E até esquecido dos ganidos dessas horas... Uma vergonha!
– Aparece logo à noite, pelo Tinoco...
Há reunião. E adeusinho...
– Adeus, Lambão.
Foi no quintal, à tarde,
quando a D. Sância dormia a sesta. O antigo companheiro, empoleirado no muro,
rondava a cozinha da vizinhança, onde assavam carapaus. Por acaso chegara à
janela nesse momento, vira-o e fizera-lhe sinal. E o outro, de boa ou má fé,
abrira o saco. Mas há males que vêm por bem. Depois da conversa, pensara
maduramente no caso, e ali estava agora disposto a ressuscitar daquela vida
perdida em que o destino o metera.
Sim, ali estava, a dois
passos do Tinoco, o clube da gataria do bairro. Bem situado, com saída para
dois quarteirôes, fora fundado pelo maior valdevinos da geração: – o Hilário.
Era um telhado corrido, quase plano, amplo, alto, mas de onde se podia cair de
qualquer maneira numa aflição. Um achado. Como a casa servia de armazém, o
Hilário viu de relance as condições do local. E logo no outro dia os beijos, as
mordedelas, os arranhões e os queixumes do cio foram ali.
Bons tempos esses!
Namorava então a Boneca, uma gatinha borralheira de a gente se perder.
– Ora viva!
– Miiau...
– Seja bem aparecida, a minha princesa!
– Miiau...
Mimo da cabeça aos pés.
Mas um rebuçadinho! Depois enrodilhara-se com a Moira-Negra, um coiro velho, curtido
e batido. Cada guincho que abria a noite!
– Cala-te lá com isso, mulher!
Isso calava ela! Acabou
por se aborrecer. Por fim veio a lambisgóia da Perricha... Uns trabalhos.
Ciúmes, fraqueza, dores de cabeça, o diabo!
– Matas-te, filho, arruinas-te...
Palavras sensatas da mãe.
– Muda de vida, homem! Essa excomungada
leva-te à sepultura.
Mas quê! O vício pode
muito.
Até que a mãe morreu de
velhice e desgosto, a Perricha desapareceu do bairro e ele foi cair por acaso
no quintal da D. Sância.
– O bichinho está
doente. Se calhar é fome...
E a ternura da senhora
nunca mais o largou. A princípio ainda tentou reagir, mas, por fim, o corpo, o
miserável corpo, acostumou-se ao ripanço. A parva cuidava que era amor
correspondido. Melhor fora! Amizade sincera não é com gatos. Simplesmente, quem
brinca aos afogados, afoga-se. Com o andar do tempo, a moleza foi tomando conta
dele... Quando reparou, estava perdido. Às vezes apetecia-lhe atirar com os
aparelhos ao ar. Infelizmente, as vidas iam ruins. Virava-se um balde de
restos, e não se aproveitava uma espinha. Que remédio, pois, senão
contemporizar... Mas cara aposentadoria! Considerando bem, melhor fora que o
estafermo da solteirona nunca lhe tivesse aparecido. Mais valia andar pelado e
a cair de fome, e ser capaz de responder ao pé da letra aos sarcasmos que agora
lhe atiravam.
– Olha o Mago!... Olha o milionário!...
O patife do Tareco. Era de
o derreter logo ali! A desgraça é que não podia passar da mansa indignação que
o roía. Nem forças, nem coragem para mais. E, logo por azar, com o clube à
cunha! Parecia de propósito. Raios partissem a D. Sância, e mais quem lhe
gabava as almofadas! Por causa delas, pouco faltava para lhe cuspirem na cara!
– Com que então de
visita aos bairros pobres? Obra de assistência ao desvalidos, não?
Até o bandido do Zimbro.
Vejam lá! O engraçado! Não contente de lhe roubar a mulher, de lhe pregar um
par deles do tamanho duma procissão, vinha ainda com provocações à vista de
toda a gente. Ah, mas estava redondamente enganado, se cuidava que não recebia
o troco devido.
– O cavalheiro seja mais delicado...
– Reparem nas falinhas dele... A tratar
os amigos por cavalheiros!
– Amigos? Eu não tenho amigos da sua
laia!
– Pesam-lhe na testa, coitado!
Desembestou. Cego da
cabeça aos pés, atirou-se ao abismo. Infelizmente, as ensanchas do Zimbro eram
outras. Tinha raiva, tinha dentes, tinha unhas e fôlego. Contra tais armas, que
podia a sanha dum pobre mortal, gordo e lustroso? Servir de bombo da festa... É
que nem a primeira acertou! Ágil e musculado, e com a maleabilidade de uma
cobra, o inimigo furtou-se à sua fúria, e ripostou a valer ao golpe esboçado.
Depois, foi o bom e o bonito! A seguir, uma saraivada de investidas
traiçoeiras, meia dúzia de navalhadas de liquidar um homem. Só visto! No fim da
luta, quando já não podia mais e se confessou derrotado, sangrava e gemia
tanto, que até um polícia, em baixo, na rua estreita, se comoveu. O clube,
esse, parecia doido de alegria. A Faísca rebolava-se no chão, de contente.
Fugiu desvairado pelos
telhados fora. A lua, cada vez mais branca lá no alto, olhava-o com desdém. A
cidade, adormecida, parecia um cemitério sem fim. Da torre duma igreja, saía um
pio agoirento.
Jogara naquele lance o
resto da dignidade. E perdera. Dali por diante, seria apenas uma humilhação sem
esperança. Ele, que tivera nas mãos possantes e nervosas o corpo fino e
submisso da Boneca, ele, o escolhido da Moira-Negra, ele, o companheiro de
noitadas do Hilário, ele, Mago, relegado definitivamente para o mundo das
pantufas e dos tapetes! Proibido para o resto da existência de pensar sequer
numa baforada da úmida frescura que agora lhe atravessava as ventas e lhe
deixava cantarinhas no bigode... Condenado para sempre ao bafio da maldita sala
de visitas da D. Sância! Negra sorte! E tudo obra do coirão da velha... Se não
fosse ela, em ver de ir ali esquadrilhado e a mancar da mão esquerda, estaria
no Tinoco a soltar ganidos com os outros, depois de ter feito o Zimbro em
pedaços... Assim, arrastava-se penosamente por aquele caminho de desespero, tal
e qual um moribundo a despedir-se da vida... Miséria de destino! Vexado,
vencido, retalhado no corpo e na alma...E tudo obra do estupor da santanária!...
Vinha rompendo a manhã. Um
sino ao longe deu seis horas. Abriam-se as primeiras janelas. Grandes laivos
avermelhados anunciavam a chegada próxima do sol.
Parou. Lambeu a pata
doente e sacudiu-se, num arrepio. Uma lassidão profunda começava a invadi-lo.
Maldita D. Sância! Se nunca tivesse conhecido a tal sujeita...
Olha, olha, a enevoar-se-lhe
a vista!... Queriam ver que ia desmaiar?!
Encostou-se a uma chaminé,
e ficou algum tempo sem dar acordo de si, a arfar penosamente. Até que uma onda
de energia o trouxe de novo ao mundo. Arregalou os olhos. Estava melhor,
felizmente! Já enxergava claro outra vez. Podia continuar.
Em que trabalhos o metera
o raio da velha! E louvar a Deus safar-se com vida da brincadeira... Coça
valente... Por um triz que não se ficava... Muita resistência tinha ele ainda!
A alguns metros apenas do
jardim da casa, cuidou que tornava a desfalecer. E só então é que reparou:
deixava um rastro de sangue por onde passava...
Fez das tripas coração e
lá conseguiu equilibrar-se e chegar ao pequeno muro que vedava o paraíso da sua
perdição. Saltava? Não saltava? Que infâmia, regressar aos mimos da D. Sância!
Que nojo! Que ordinarice!
Mas a que propósito vinham
agora semelhantes escrúpulos e recriminações? Sim, a que propósito? Fartinho de
saber que nem sequer lhe passara seriamente pela cabeça a idéia de resolver o
caso doutra maneira! Ao menos fosse sincero! De resto, que esforço concreto
fizera para se libertar? Nenhum. Ainda não havia uma dúzia de horas, ouvira a
voz de Lambão como um eco da própria consciência... E, afinal, ali estava outra
vez! E viera de livre vontade... Ninguém o obrigara... Já roído de remorsos?
Ora, ora! Outro fosse ele, nem aquela casa encarava mais. E voltara! Sim,
voltara miseravelmente... E à procura de quê? Da paz podre, dum conforto
castrador... Que abjeção! Que náusea!
E, sem querer, sem poder aceitar a sua degradação,
Mago entrou pelo postigo da cozinha e foi-se deitar entre os braços balofos da
D. Sância.
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Miguel Torga In: Bichos.
(Imagem: ap12aanimais.forumeiros.com)
(Imagem: ap12aanimais.forumeiros.com)
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