Sentia-se cada vez pior. Agora nem a cabeça sustinha de pé.
Por isso encostou-a ao chão, devagar. E assim ficou, estendido e bambo, à
espera. Tinha-se despedido já de todos. Nada mais lhe restava sobre a terra
senão morrer calmo e digno, como outros haviam feito a seu lado. É claro que
escusava de sonhar com um enterro bonito, igual a muitos que vira, dentro dum
caixão de galões amarelos, acompanhado pelo povo em peso… Isso era só para
gente, rica ou pobre. Ele teria apenas uma triste cova no quintal, debaixo da
figueira lampa, o cemitério dos cães e dos gatos da casa. E louvar a Deus
apodrecer a dois passos da cozinha! A burra nem sequer essa sorte tivera. Os
seus ossos reluziam ainda na mata da Pedreira. Chuva, geada, sincelo em cima. Até um
lebrão descarado se fora aninhar debaixo da arcada das costelas, de caçoada!
Ah, sim, entre dois males… Já que não havia melhor, ficar ao menos ali. No
tempo dos figos, pela fresca, a patroa viria consolar a barriga. Gostava de
figos, a velhota. E sempre se sentiria acompanhado uma vez por outra. Não que
fizesse grande finca-pé naquela amizade. Longe disso. A menina dos seus olhos
era a morgada, a filha, que o acariciava como a uma criança. A velha toda a
vida o pusera a distância. Dava-lhe o naco da broa (honra lhe seja), mas
borrava a pintura logo a seguir: – Ala! E ele retirava-se
cerimoniosamente para o ninho. Só a rapariga o aquecera ao colo quando pequeno,
e, depois, pelos anos fora, o consentira ao lume, enroscado a seus pés,
enquanto a neve, branca e fria, ia cobrindo o telhado. O velho também o
apaparicava de tempos a tempos. Se a vida lhe corria e chegava dos bens de
testa desenrugada, punha-lhe a manápula na cabeça, meigamente, e prometia-lhe a
vinda do patrão novo. Porque o seu verdadeiro senhor era o filho, um doutor,
que morava muito longe. Só aparecia na terra nas férias de Natal. Mas nessa
altura pertencia-lhe inteiramente. Os outros apenas o tratavam, o sustentavam,
para que o menino tivesse cão quando chegasse. Apesar disso, no íntimo,
considerava-se propriedade dos três: da filha, do velho e da velha. Com eles
compartilhara aqueles longos oito anos de existência. Com eles passara invernos, outonos e primaveras, numa paz de família unida. Também estimava o
outro, o fidalgo da cidade, evidentemente, mas amizades cerimoniosas não se
davam com o seu feitio. Gostava era da voz cristalina da dona nova, da índole
daimosa da patroa velha e da mão calejada do velhote.
– Tens o teu patrão aí não tarda, Nero…
O nome fora-lhe posto quando chegou. Antes disso, lá onde
nascera, não tinha chamadoiro. Nesse tempo não passava dum pobre lapuz sem
apelido, muito gordo, muito maluco, sempre agarrado à mama da mãe, que lhe
lambia o pêlo e o reconduzia à quentura do ninho, entre os dentes macios, mal o
via afastar-se. Pouco mais. Com dois meses apenas, fez então aquela viagem
longa, angustiosa, nos braços duros dum portador. Mas à chegada teve logo o
amigo acolhimento da patroa nova. Festas no lombo, leite, sopas de café. De tal
maneira, que quase se esqueceu da teta doce onde até ali encontrava a bem
aventurança, e dois irmãos sôfregos e birrentos.
– Nero! Nero! Anda cá, meu palerma!
A princípio não percebeu. Mas foi reparando que o som vinha
sempre acompanhado de broa, de caldo, ou de um migalho de toucinho. E acabou
por entender. Era Nero. E ficou senhor do nome, do seu nome, como da sua
coleira. Principalmente depois que o patrão novo chegou, sério, com dois olhos
como dois faróis. Apareceu à tarde, num dia frio. Fora-o esperar na companhia
da patroa nova. É claro que nem sequer lhe passara pela ideia a vinda de
semelhante figurão. Seguira-a maquinalmente, como fazia sempre que a via
transpor a porta. Habituara-se a isso desde os primeiros dias. Com o velho não
ia tanto. E com a velhota, então, só depois de ter a certeza que se encaminhava
para os lados da Barrosa. Na cardenha do casal morava o seu grande amigo, o
Fadista. De maneira que o passeio, nessas condições, já valia a pena. Enquanto
a dona mondava o trigo, chasquiçava batatas ou enxofrava a vinha, aproveitava
ele o tempo da eira, de pagode com o camarada. Mas, se ela tomava outro rumo,
boa viagem. Com a nova, sim. A farejar-lhe o rasto, conhecera a terra de
lés-a-lés. Até missa ouvia aos domingos, coisa que nenhum cão fazia.
Aninhava-se a seu lado, e ficava-se quieto a ver o padre, de saias, fazer
gestos e dizer coisas que nunca pôde entender. Foi a seguir a uma cerimônia
dessas que o doutor chegou à terra. Todo muito bem vestido, todo lorde. Quando
viu aquele senhor beijar a rapariga, atirou-lhe uma ladradela, por descargo de
consciência. E o estranho, então, olhou-o atentamente, deu um estalo com os
dedos, a puxar-lhe pelos brios, e teve um comentário:
– O demônio do cachorro é bem bonito!
Envaideceu-se todo. Mas o homem perdeu-se logo em perguntar à
irmã, em cumprimentos a quem estava, sem reparar mais nele. E não teve remédio
senão segui-los à distância, num ressentimento provisório. Ao chegar a casa,
foi direto ao cortelho. E ali esteve uma boa hora à espera, a morder-se de
ansiedade. Por fim, o recém-vindo chamou do fundo da sala:
– Nero!
Venha cá!
Era a posse.
Havia naquela voz um timbre especial que o fez estremecer. Pela primeira vez
sentia que tinha realmente um dono. Contudo, lá arranjou forças para se deixar
ficar enroscado na palha, salamurdo, a fingir que dormia.
Mas a ordem
voltou logo a seguir, mais forte, mais imperativa:
– Nero!
Ergueu-se. Subiu os degraus da loja e,
humilde e desconfiado, apresentou-se.
O fulano acabara de jantar. No prato
onde comera, jaziam, apetitosos, os restos do frango pedrês que a patroa velha
degolara de manhãzinha. Apesar de o desgraçado ser ser amigo (até em cima do
lombo se lhe empoleirava), sentia crescer a água na boca só de ver aqueles ossos
descarnados. Misérias... O hóspede, porém, em vez de lhe acalmar a gula
pecadora, pôs-se a fazer-lhe festas, a apalpar-lhe a cabeça, a admirar-lhe a
grossura do rabo, a examinar-lhe as patas, e rematou a vistoria desta maneira:
– Não há dúvida nenhuma: é um lindo bicho!...
Rosnou, insofrido. Outra vez a mesma conversa de há bocado! Se
guardasse o paleio e lhe desse o esqueleto do seu compadre calçudo, melhor
fazia!
Deu-lho, e a seguir despediu-o como uma ordem seca, de quem
gostava de ser obedecido. No dia seguinte é que voltou à carga, e de que
maneira! Não o largou durante uma hora! Começara o calvário da educação.
Correu a princípio ao lenço enrolado, a cuidar que se tratava
de uma brincadeira. Mas depois viu que o negócio era a sério, que o sujeito
tinha lá qualquer coisa encasquetada.
– Vá buscar, Nero, vá lá...
Fez-se desentendido. E o sacripanta, depois de insistir, de se
cansar a ver se o convencia por bem, larga-lhe uma vergastada rija! A primeira
que apanhou...
Seguiu-se uma semana triste. Até que num sábado de madrugada saíram
ambos para os montes, ainda enevoados e cobertos de sincelo. Nunca deixara o
ninho tão cedo. Gostava das manhãs na cama, mornas, a dormitar. O galo
acordava-o sempre ainda o sol sonhava, a cantar-lhe mesmo ao pé, quase ao
ouvido, uma lenga-lenga parva, estridente, sempre igual. A princípio, resmungou.
Depois acostumou-se ao fadário, e até estimava o despertador, só para ter o
prazer de saborear os lençóis. Mas naquele dia foi o doutor que lhe bateu ao
ferrolho. Andavam quase de mal desde a última lição. Mandara-lhe buscar um ovo,
e quebrara-o nos dentes, sem querer. E vai logo um puxão valente de orelhas,
sem dó nem piedade! Apesar de ressentido por semelhante injustiça, ergueu-se.
Comeu a broa e partiu atrás dele. De repente, já nos montes do Pioledo, ouviu
um ruído de coisa que levanta voo, seguido de um estrondo de estarrecer. Que
ricos tempos! Fugira tão espavorido, tão desvairado, que batera de encontro à
cepa duma giesta! Cheio de paciência, e até com certa ternura, o dono, então,
chamou-o, acarinhou-o, incutiu-lhe confiança:
– Não tenhas medo, maluco! Sossega, que ninguém te faz mal!
Depois mostrou-lhe no chão um passarolo morto.
– Nero, boca lá, boca!...
Era para ir buscar aquilo, pelos vistos... Desconfiado,
chegou-se ao pé.
– Traz cá!...
O bicharoco estava realmente defunto. Deitou-lhe os dentes. O
que era a inocência! Tinha cócegas na boca!... De repente, um cheiro forte,
penetrante e doce, inundou-lhe as ventas, o estômago, o corpo inteiro! Foi a
primeira grande hora da vida... Depois disso é que os montes começaram a
dizer-lhe coisas que até ali nem de longe poderia suspeitar. Só então ficou a
saber que por eles a cabo, nas manhãs doiradas e calmas de Janeiro, era um
louvor a Deus de perdizes... E que não havia nada melhor no mundo do que senti-los
frios e firmes sob as patas, quando o sangue fervia nas veias e o instinto
pedia asas ao vento. Colado àquela dureza gelada, a rastejar e a tremer de
emoção, a vida sabia-lhe à maior das venturas. Talvez que em certas ocasiões
devesse caçar doutra maneira. Ser mais despachado. Mas sentia as malvadas à
frente do nariz, e sumia-se no chão, nem sabia se a esconder-se, se a prolongar
o prazer. Porque a princípio ainda cuidou que conseguiria assim agarrar alguma.
Depois, não. Finas como órgãos, no melhor da festa punham-se na alheta. E
perdeu as ilusões. Apesar disso, nunca deixara de se encolher, de tentar
disfarçar o corpo sempre que as farejava perto, e, muitas vezes, tão estacado
ficava, que era preciso o dono empurrá-lo com a ponta da bota grossa.
– Entra, Nero, entra lá... Deita fora!
Não arrancava. Continuava pregado ao terreno, a namorar a
imagem adivinhada, a encantá-la com os olhos ávidos e, sobretudo, a fruir
aquele gozo de sentir o coração pulsar de encontro às fragas.
Até que uma ordem mais impaciente lhe dizia que eram horas.
Dava a pancada. E ficava-se depois a olhar a manhosa erguer-se apressada,
rumorosa, e cair daqui a pouco, já passada ou feita num molho. Entrava de novo
em ação. Num pronto, entregava a pobre ao dono, tal como a encontrava caída –
viva ou morta. Nunca um gesto sequer de piedade. Disso pesava-lhe agora a
consciência. Se estavam de ponta-de-asa, as desgraçadas fugiam, gemiam, quase
tinham voz de gente a pedir compaixão. Nem a alma lhe bolia. A esse respeito,
fora sempre surdo e cego. Muitas vezes pensava se não seria por essa razão que
lhe acontecera a desgraça do Soitinho! Ninguém as faz que as não pague... Bem
que desconfiara logo do outro caçador. Aquele jeito de pegar na arma não lhe
merecia confiança, não. Mas mandava quem podia... Segue-se que estavam ainda
praticamente a sair de casa, quando um cheiro a perdigão lhe entrou em faca
pelo nariz. Estacou ali mesmo, no meio da estrada, voltado para a ribanceira.
Ainda se lembrava perfeitamente de ter ficado com a pata direita no ar,
paralisada. Depois, a tirar de ventos, foi andando cautelosamente. Até que se
encontrou a dois palmos do seu velho conhecido. Era um patriarca manhoso, de esporões
em rosário pelas pernas acima, que há anos lhe moía a paciência. Três vezes –
em três épocas sucessivas – o pusera a tiro ao patrão, sem valer de nada. O
velhaco abria as asas, deixava o chumbo passar, e, sem ninguém mais a
afligi-lo, ficava à larga, a criar unto. Desta feita, porém, a coisa fiava
doutra maneira. Iam dois, e pudera preveni-los a tempo e horas. E estava então
como o focinho em cima do excomungado, quando o parvo do caçarreta lhe manda um
tiro à cabeça! Ficou ali como morto, e ainda por maior desgraça a ouvir a
risada escarninha do albarrão, ao dobrar o cerro, são e salvo! Trinta anos que
durasse, não se esqueceria nunca daquela hora. Todo o caminho ao colo do
doutor, depois de lhe ouvir dizer:
– Uma estupidez destas, só tinha uma resposta...
Duas semanas de molho, e, diga-se a verdade, também de
ternuras, de cuidados, de comidinha da boa. Por fim lá arribou, e a brincadeira
ficou-lhe de emenda. Nunca mais correu a foguetes. Quem quer que fosse, podia
chamar e assobiar à vontade. Nem se mexia. Às vezes, rilhadinho de vício. Mas
não ia. Esperva pelo dono, que atirava quando devia, e vamos indo! Errar, todos
as erravam, infelizmente. Ainda estava para nascer o primeiro que se pudesse
gabar do contrário. Pelo menos à sua frente... Pexotices de uma pessoa se
benzer! Mas, enfim, o dono não era lá dos piores, e largava o tiro na altura
própria, honradamente, quando elas repinicavam as castanholas no ar. Por isso,
aguardava que viesse.
Nem as lérias do Fadista o comoviam, a sugerir-lhe outras
caçadas de menos risco que poderiam fazer juntos pela freguesia... Era um cão
que se respeitava, que tinha dignidade. Borgas dessas eram lá com rafeiros, com
jecos do fado e do mundo. O que não quer dizer que fosse nenhum maricas! Tratava
de arranjar a vida (a sua vida particular) sem dar nas vistas e sem
acompanhamentos, que acabavam sempre em cenas desagradáveis. Não que tivesse
medo a qualquer dos rufias que costumavam aparecer nessas ocasiões. Se acontecia
ver-se metido nelas, batia-se ali como homem, até que as coisas ficassem
esclarecidas. Tocava a quebrados, dava a matar. E nunca ficara do lado dos
vencidos! Pelo contrário. Procurava, contudo, afastar-se de rixas e contendas.
E dissera sempre que não ao amigo, por sinal um belíssimo animal, apesar da
baixa extração. Morrera há um ano, o desgraçado. Que razia! A guarda espalhou
as bolas, e foi a eito. Valeu-lhe a ele estar à argola nessa data. Senão, era
uma vez um Nero. Que, para chegar à miséria presente, antes tivesse morrido
também. Ao menos, deixava saudades. Assim, acabava de velhice, podre por
dentro, a meter fastio a toda a gente. Se então o levasse o diabo, não haviam
de faltar lamúrias e lágrimas naquela casa. Agora, lia nos olhos de todos o
desejo de que partisse o mais depressa possível para dar lugar a outro... E
quem seria o felizardo, que lhe herdaria o ninho? Quem viria ouvir as longas
conversas à lareira, no inverno, quando a chuva escorregava dos beirais e o
vento norte soprava? Tanto pensara no filho, no seu Jau, para o render ali! Mas
o raio herdara os defeitos da mãe: mau nariz e um pouco de sofreguidão. Não se
aguentava com elas ao pé. Lá no abocar e trazer à mão, saíra ao lençol de cima:
nem sequer o ovo da educação quebrara. Uns dentinhos de veludo. A alegria que
tivera a primeira vez que o viu amarrado junto de si! Deitou-lhe o canto do
olho, e o pequeno parecia uma estátua: teso, esticado, o rabo como uma seta...
Nos montes da Queda, lembrava-se bem. Iam a mata-cavalos num rasto, quase sem
tomar respiração. A prever já o resultado da correria, tentava deitar água na
fervura:
– Mais devagar, rapaz, mais devagar...
Mas o demônio tinha os nervos da mãe. Puxava como um dragão
pela encosta acima. E ele seguia-o no andamento, a tentar encobrir o
estabanado.
– Calma! Calma!
Nada! Aquele cheiro arrastava-o, endoidecia-o.
– Isto não vai a matar, homem de Deus...
Até que chegaram perto do bando. Fez-lhe sinal, estacou, e o
garoto ficou-se também. Mas, as perdizes saltaram e, quando o dono chegou, deu
com o nariz no sedeiro. À noite, uma grade às costas, coisa que não acontecia
há anos. E ao cabo de mais três ou quatro dias de experiência, o doutor deu-o a
um aldeagante de Jurjais. Viera vê-lo uma vez, pelo S. Miguel. Pediu-lhe a
bênção e contou. Até fominha! Depois lá se foi, coitado. E podia estar ali a
receber-lhe o último suspiro e a herdar-lhe o ninho de musgo. Sempre era ter
alguém da família ao lado. Assim, morria sozinho, tristemente. Nem o ordinário
do galo, com quem tanta paciência tivera, nem esse vinha! Andava pelo
quinteiro, muito asno, muito parvo, como se mesmo a dois passos não estivesse a
acontecer aquela grande desgraça. É certo que também ele, Nero, vira morrer o
gato, um sem número de frangos e galinhas, e cada ano seu porco, sem menor
estremecimento. A verdade acima de tudo. Mas, desta vez, o caso mudava de
figura: finava-se um cão, um cão de caça, um navarro legítimo! Ingratidões...
Porque, apesar de perdigueiro, quem tinha ladrado aos lobos, à raposa e à
doninha, quando na capoeira parecia a semana santa?! Ele. Ele, Nero, que
entregava a alma ao Criador, ali, desdentado, com as urinas em sangue, cego
duma visão... E o que ele fora na mocidade! Ágil, asado, até mesmo toleirão...
Os enganos do mundo!
Lá dentro frigiam carne. Ouvia bem o
chorriscar da gordura na sertã. Dantes, seria o bastante para lhe
correr a baba pela barbelas abaixo. Agora, só a lembrança de torresmos dava-lhe
volta ao estômago. Uma perfeita ruína! Estava podre por dentro e por fora… Raio
de vida! E o malandro do galo a galar a galinha! Tivesse ele procedido doutra
maneira, quando o parvo era frangote, e já então cheio de proa, e não estaria
agora o demo a fazer-lhe macaquices. Mas era feio um navarro dar um apertão num
frango. Saiba um homem respeitar-se. Que grande dor de cabeça!... Que peso
medonho na arca do peito!... E o corpo mole, sem ação…
Aí vinha a patroa nova observar o andamento daquilo…
Fechou os olhos. Sempre gostava de ouvir o que diria quando o
visse como morto…
Ela chegou-se e ficou silenciosa.
Por uma fresta das pestanas espreitou-lhe a cara. Chorava.
Desceu novamente as pálpebras, feliz.
E à noite, quando o luar dava em cheio na telha vã da casa, e
os montes de S. Domingos, lá longe, pareciam ter já saudade das suas patas seguras
e delicadas, quando o cheiro da última perdiz se esvaiu dentro de si, quando o
galo cantou a anunciar a manhã que vinha perto, quando a imagem do filho se lhe
varreu do juízo, fechou duma vez os olhos e morreu.
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Miguel Torga In: Bichos.
(Imagem: xanabreu.blogspot.com)
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