À ceia, o patrão, com cara de poucos
amigos, recusara-lhe as festas desta maneira:
- Deixa-te lá de brincadeiras e
enche-me esse bandulho, que amanhã de madrugada, nem que chovam picaretas...
Tal e qual. Meteu a viola no saco,
claro, e atirou-se ao penso como pôde. Mas não sentia vontade. Tinha ainda no
estômago os tojos que despontara à tarde no monte, e andava, sem saber porquê,
de coração apertado. Além disso, aqueles modos do dono até parece que
endureciam o feno. A gente também vive de boas palavras. E, verdade se diga,
gostava do sujeito. Desde que ele, há seis anos, na feira dos vinte e três, o
distinguira no meio dum regimento de azémolas e lhe dera uma palmada rija na
anca, simpatizara com a sua figura atarracada, vermelha, a respirar saúde e
bonomia.
- Quanto custa o jerico?
- Vinte libras.
- Não é estampa para tanto dinheiro.
Ai o alma do diabo a desfazer!
- Vinte libras, nem menos um real.
- Deixe o garrano por dezasseis, e já
é caro como fogo...
O cigano! Mas logo que o viu contar
as dezassete moedas e pegar-lhe à arreata, cantou aleluias. Estava farto das
bebedeiras do Preguiças. Cheio até às orelhas de subir a malvada ladeira da
Queda a ouvir-lhe as asneiras de bebedolas. Mas era um macho! Aguentava no
lombo quinze alqueires de pão como se fossem quinze alqueires de penas.
Estribado nisso, o moleiro, com cardina ou sem ela, nas feiras, punha o preço
em vinte libras. Resultado: ninguém o levava.
- Você quer que lho carreguem de
oiro!
- É pegar ou largar.
E tinha de regressar à loja, à
maldita loja encostada ao moinho, ao lado da roda, sempre molhada e toldada de
barulheira, e no dia seguinte trepar novamente a encosta, ao som da ladainha do
costume.
Zumba na barra da saia, ó Zé...
Comida - carqueja, palha cevada
estreme, e só lá de tempos a tempos uma pitada de grão. Vida negra! Por isso,
quando viu o contrato fechado, sentiu-se redimido. E, apenas o novo dono se lhe
escanchou em cima e seguiram pela estrada de Feitais, parecia-lhe que tinha
asas, de tão feliz. À chegada, logo uma manta a resguardá-lo dum resfriado, e
milhão branco e graúdo na manjedoura. Um céu aberto! Evidentemente que não
havia só rosas naquela casa. Longe disso! O macho dum almocreve, sabe Deus...
Mas, bem comido e bebido, um homem trabalha com alegria. De mais a mais se o
patrão, às tantas, diz o seu dito engraçado, a animar:
- Ah! Morgado, que me borras a
pintura!
Nem respondia. E assim que o arrocho
dava o último apertão à cilha, largava à frente da recua, de pendão erguido.
Desta vez, infelizmente, o caso era
mais complicado. A ceia correra mal, iam sozinhos, e os bons dias foram este
consolo, pouco mais ou menos:
- Vamos lá! Vamos lá, que são seis
léguas de serra...
Não gostava de semelhantes modos.
Arrenegava de viagens mal principiadas. De maneira que recebeu a carga
aperreado, e meteu-se ao caminho a malucar no pior.
Tinham passado a última povoação do
concelho e seguiam agora pela estrada velha de Arcã, sumidos na escuridão,
varados de lado a lado por uma chuvinha gelada e teimosa. Mas o inverno corria
daquela maneira: ou nevões de caiar a alma de tristeza, ou então um tempo
assim, frio, húmido, cortado por lufadas ásperas de ventania. O patrão
pegava-lhe à arreata. Ambos calados. Só os passos no saibro duro os revelavam
ao ouvido atento das penedias, que escutavam das trevas.
Não se lembrava de ter feito em toda
a vida jornada que se parecesse. Nunca lhe acontecera, como hoje, ir com os
cinco sentidos num alarme constante. Que raio de madrugada mais tenebrosa! Em
vez de encher a alma de esperança, cobria-a de agoiro! E, sem querer, Morgado
começou a sentir o corpo arrepiado e a desejar com desespero a luz da manhã.
Ah, mas sabe Deus onde viria ainda o
dia! Seis léguas de serra, se entendera bem. Pelos vistos, era tirada até ao
vale de Vila Pouca. Daí a necessidade de aproveitarem as horas mortas da noite.
E todo o pêlo se lhe crispava, à ideia de que faltava muito ainda para que o
sol alumiasse a terra e tirasse à caminhada o ar de pesadelo que a tornava
infindável. É certo que a presença do dono o sossegava um pouco. Embora o não
visse, por causa do comprimento da rabeira e da negrura cerrada, sabia que
caminhava à frente, pronto para o que desse e viesse. E que raio poderia
acontecer? Tropeçar? Não aguentar a carga? Se fosse apenas isso! Embora
pessimamente dormido e com a barriga vazia, nem as pernas lhe quebravam às
primeiras, nem três sacos de centeio lhe faziam mossa. Os aborrecimentos que
temia eram doutra natureza... Qualquer encontro desagradável, por exemplo...
Nem de propósito! Ele a pensar no
mal, e a ponta dum uivo tenebroso a furar-lhe os ouvidos.
Um arrepio fundo percorreu-lhe o corpo.
E a seguir, todo ele ficou hirto, frio, pregado ao chão, num pânico mortal.
Obra de um segundo, apenas. O justo tempo de a arreata ficar esticada entre a
mão que a segurava e o argolão do cabresto. É que reagiu logo. Que diabo! Ia
ali quem o defendesse... Não havia razão para um terror assim!
Mas o dono, enigmaticamente, recuava.
Aos poucos, encurtava os passos e chegava-se ao seu bafo. Mau!...
Novo uivo, quase sobre eles, fendeu a
noite. E ambos, agora como se fossem um só, de tão cingidos, se puseram a pisar
o chão ao de leve, encolhidos no bioco da noite, com a respiração suspensa.
Tolice pura, porque de nada lhes
valia o disfarce. Morgado sabia-o bem. O instinto já o avisara de que tinham à
perna alcateia esfaimada, capaz de farejar a presa a cem léguas de distância.
De resto, os uivos eram de tal modo cerrados à volta, que só mesmo um milagre.
Ah, sim, o coração não lhe vaticinava
coisa boa do passeio. Há dias que trazia dentro do peito um pressentimento
negro. Depois, a repugnância da ceia, o acordar sobressaltado, as horas
soturnas do caminho, e, a coroar tudo, o silêncio enigmático e desacostumado do
dono...
Mas, precisamente, o dono erguia a
voz do poço onde a sepultara:
- Estamos perdidos, Morgado! Raios
partam a minha pouca sorte!
Não sabia que razão levava o
almocreve a proceder daquela maneira. A que propósito dizia coisas à toa,
berrava, batia com força as botas grossas no chão, como se quisesse sozinho
fazer barulho por trinta? Talvez tentasse amedrontar as feras, dando a entender
que seguia ali um regimento de recoveiros com a respectiva caterva de bestas.
Pois sim! Se pensava isso, enganava-se redondamente. Mais por adivinhar que por
distinguir, Morgado antevira já uns olhos incendiados de fome a espreitá-los do
coração da noite. E o patrão decerto os notara também, porque agora pusera-se a
petiscar lume num seixo com a folha de aço da navalha. Como se os lobos
tivessem medo das pobres faíscas que lhe saíam das mãos trémulas e garanhas! Se
apenas dispunha desse recurso, se não trazia no bolso um daqueles pistolos com
que nas feiras, quando havia zaragata, os homens se matavam uns aos outros,
estavam liquidados. Ali só mesmo um dos tais estoiros medonhos que pareciam
trovões e desfaziam os ajuntamentos num suspiro. Ou isso, ou nada. Eram já três
vultos que vislumbrava na escuridão, calados, mas resolutos.
Ora, em vez de sacar do tal
instrumento que, a trinta ou quarenta passos de distância mandava um cristão
desta para melhor, o dono, depois do ridículo arraial de pirilampos, chegou-se
a ele e, sem mesmo o fazer parar, cortou dum golpe as cordas que seguravam a
carga. Os sacos de centeio caíram espapaçados no lajedo.
Que raio de manobra era aquela?
Pretenderia o patrão tentar a fuga? Quereria trepar-lhe ao lombo e abrir
caminho pela serra fora? Nem mais. Mas uma triste ideia, aliás. Ele, Morgado,
já não tinha as pernas da mocidade. Muito embora se considerasse ainda um
animal capaz de cumprir o seu dever, não lhe pedissem semelhante bonito, depois
de três horas de jornada, mal dormido e mal comido, e, ainda por cima, num
caminho de pedras e com uma alcateia à ilharga. Tudo tem os seus limites. Além
de que um macho não é bicho de correrias. Isso é lá com pilecas de ciganos.
- É o único recurso...
Seria. Mas punha-lhe dúvidas... Em
todo o caso, não pensasse o amo que se negava. Não. Galopava à sobreposse, e
assim havia de continuar até rebentar os peitos. Se discordava da resolução
tomada, é porque realmente estava convencido de que nada se resolvia com panos
quentes.
- Anda, Morgado, que eles vêm aí!
Que novidade! Outra coisa é que seria
para admirar.
Depois de o aliviar da carga, o dono
saltara-lhe para cima, dera-lhe meia volta e metera-o a toda a brida a caminho
de casa. Infelizmente, a alcateia fizera o mesmo. E ali iam à destilada também,
quase ao lado, cinco lobos medonhos. Ah, o patrão não ter um trabuco dos tais!
Assim, era a perdição.
E a manhã sem romper! Levava os
cascos em ferida, sentia o suor cair-lhe em fonte pelas virilhas, todo o corpo
dizia bonda ao desatino de semelhante desfilada, e nem ao menos um sinal de
alvorecer!
Quanto mais corria, mais o vento lhe
soprava nos ouvidos. Assobiava de tal modo, que parecia fazer troça daquela
fuga desordenada.
- Aguenta, Morgado! Não esmoreças,
pelo amor de quem lá tens!
Pois sim. O ponto era poder. Muito
embora quisesse valer à aflição do dono, e à sua também, as pernas negavam-se.
Por isso, pouco a pouco, foi abrandando o passo, a fazer sabe Deus que
sacrifício para não cair redondo no chão.
- Grande ladrão, que me atraiçoas!
A paga que recebia! Não bastavam as
chicotadas secas e contínuas que, com a soga da rabeira, lhe dava na cabeça,
nas ancas e onde calhava, ainda um insulto daqueles! Mas chegara ao limite das
forças. Batesse, espetasse mesmo a ponta da navalha, à laia de espora, fizesse
o que entendesse... Fora até onde podia. Agora...
- Excomungado! Desgraças-nos a ambos!
Paciência. Quem dá o que tem...
Um lobo saltara já do barranco para a
estrada.
- Minhas ricas dezassete libras...
Não percebeu. Parara exausto, com o
corpo em fogo e a cabeça tonta da nortada e das vergastadas que recebera. E não
abrangeu logo o sentido verdadeiro de semelhantes palavras numa hora assim.
- A estas digo-lhes adeus...
Mas apenas o almocreve desmontou, e
num relâmpago lhe tirou os aparelhos, acabou por compreender que o ia abandonar
ali, esfalfado, coberto de suor, indefeso, à fome do inimigo. Salvava a vida
com a vida dele... E lamentava as suas dezassete libras!
E, afinal, a manhã vinha a romper!...
Só quando viu o dono a caminhar pela serra fora de albarda às costas - não se
envergonhar! - e sentiu os dentes do primeiro lobo cravados no pescoço, é que
reparou que a luz do dia começara a desenhar as coisas e a dar significação a
tudo.
______
Miguel
Torga, Bichos
(Imagem: forumxt600.com.br)
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