Grande
bicho, aquele Ladino, o pardal! Tão manhoso, em toda a freguesia, só o padre
Gonçalo. Do seu tempo, já todos tinham andado. O piolho, o frio e o costelo não
poupavam ninguém. Salvo-seja ele, Ladino.
Mas
como havia de lhe dar o lampo, se aquilo era uma cautela, um rigor!... E logo
de pequenino. Matulão, homem feito, e quem é que o fazia largar o ninho?! Uma
semana inteira em luta com a família. Erguia o gargalo, olhava, olhava, e – é o atiras
dali abaixo!... A mãe, coitada, bem o entusiasmava. A ver se o convencia,
punha-se a fazer folestrias à volta. E falava na coragem dos irmãos, uns
heróis! Bom proveito! Ele é que não queria saber de cantigas. Ninguém lhe podia
garantir que as asas o aguentassem. É que, francamente, não se tratava de
brincadeira nenhuma! Uma altura! Até a vista se lhe escurecia... O pai, danado,
só argumentava às bicadas, a picá-lo como se pica um boi. Pois sim! Ganhava
muito com isso. Não saía, nem por um decreto. E, de olho pisco, ali ficava no
quente o dia inteiro, a dormitar. Pobre de quem tinha de lho meter no bico...
Contudo,
um dia lá se resolveu. Uma pessoa não se aguenta a papas toda a vida. Mas não
queiram saber... Quase que foi preciso um paraquedas.
Mais
tarde, quando recordava a cena, ainda se ria. E deliciava-se a descrever as
emoções que sentira. Arrepios, palpitações, tonturas, o rabinho tefe-tefe. E a
ver as coisas baças, desfocadas. Agoniado de todo! Valera-lhe a santa da mãe,
que Deus haja.
–
Abre as asas, rapaz, não tenhas medo! Força! De uma vez!
Tinha
de ser. Fechou os olhos, alargou os braços, e atirou o corpo, num repelão...
Com mil diabos, parecia que o coração lhe saía pelos pés! Ar, então, viste-o.
Deu
às barbatanas, aflito.
–
Mãe!
Mas
afinal não caía, nem o ar lhe faltava, nem coisíssima nenhuma. Ia descendo como
uma pena, graças aos amortecedores. Mais que fosse! No peito, uma frescura
fina, gostosa... Não há dúvida: voar era realmente agradável! E que bonito o
mundo, em baixo! Tudo a sorrir, claro e acolhedor...
A
mãe, sempre vigilante e mestra no ofício, aconselhou-lhe então um bonito antes
de aterrar. Dar quatro remadas fundas, em cheio, e, depois, aproveitar o
balanço com o corpo em folha morta, ao sabor da aragem...
Assim
fez. Os lambões dos irmãos nem repararam, brutos como animais! A mãe é que
disse sim senhor, com um sorriso dos dela...
E
pousou. Muito ao de leve, delicadamente, pousou no meio daquela matulagem toda,
que se desunhava ao redor duma meda de centeio.
Terra!
Pisava-a pela primeira vez! Qualquer coisa de mais áspero do que o veludo do
ninho, mas também quente e segura. Deu alguns passos ao acaso, a tirar das
cócegas nos dedos um prazer de que ainda tinha saudades. Depois, comeu. Comeu
com fome e com gula os grãos duros que o sol esbagoava das espigas cheias. Numa
bicada imprecisa, precipitada, foi a ver, engolira uma pedra. Não lhe fez mal
nenhum. Pelo contrário. Ricos tempos! Desde o entendimento ao estômago, estava
tudo inocente, puro. Fosse agora, e era indigestão pela certa. Arrombadinho de
todo! Por isso fazia aquela dieta rigorosa...
Falava
assim, e ria-se, o maroto. Nem pejo tinha da mocidade, que o ouvia deslumbrada.
–
A vergonha é a mãe de todos os vícios - costumava dizer.
E
tanto fazia a Ti Maria do Carmo pôr espantalho no painço, como não. Ladino,
desde que não lhe acenassem com convite para arrozada numa panela, aos
saltinhos ia enchendo a barriga. Depois, punha-se no fio do correio a ver jogar
o fito, como quem fuma um cigarro. Desmancha-prazeres, o filho da professora
aproximava-se a assobiar... Ah, mas isso é que não. Brincadeiras com fisgas,
santa paciência. Ala! Dava corda ao motor, e ó pernas! Numa salve-rainha,
estava no Ribeiro de Anta. Aí, ao menos, ninguém o afligia. Podia fartar-se em
paz de sol e grainha.
–
Que mais quer um homem?!
–
O compadre lá sabe...
–
Bem... Tudo é preciso... São necessidades da natureza... Desde que não se
abuse...
E
continuava, muito santanário, a catar o piolho. Depois, metia-se no banho.
–
Rica areia tem aqui o cantoneiro, sim senhor!
D.
Micas concordava. E só as Trindades o traziam ao beiral da Casa Grande.
Adormecia,
então. E a sono solto, como um justo que era, passava a noite. Acordava de
madrugada, quando a manhã rompia ao sinal de Tenório, o galo. Isto, no tempo
quente. Porque no frio, caramba!, ou usava duma táctica lá sua, ou morria
gelado. Aquelas noites da Campeã, no Janeiro, só pedras é que podiam
aguentá-las. E chegava-se à chaminé. Com o bafo do fogão sempre a coisa fiava
de outra maneira.
Ah,
lá defender-se, sabia! A experiência para alguma coisa lhe havia de servir. Se
via o caso mal parado, até durante o dia punha o corpo no seguro. Bastava o
vento soprar da serra. Largava a comedoria, e – forro da cozinha! Não havia
outro remédio. Tudo menos uma pneumonia!
A
classe tinha realmente um grande inimigo – o inverno. Mal o Dezembro começava,
só se ouviam lamúrias.
–
Isto é que vai um ano, Ti Ladino!
A
Cacilda, com filhos serôdios, e à rasca para os criar.
–
Uma calamidade, realmente. Mas vocês não tomam juízo! É cada ninhada, que
parecem ratas!
–
O destino quer assim...
–
Lérias, mulher! O destino fazemo-lo nós...
Solteirão
impenitente, tinha, no capítulo de saias, uma crónica de pôr os cabelos em pé.
Tudo lhe servia, novas, velhas, . casadas ou solteiras. Mas, quando aparecia
geração, os outros é que eram sempre os pais da criança.
–
Se todos fizessem como eu...
–
Ora, como vossemecê!... Cala-te, boca. Mudemos de conversa, que é melhor...
Segue-se que não sei como lhes hei-de matar a fome... - gemia a desgraçada.
–
Calculo a aflição que deve ser...
E
o farsante quase que chorava também. Quisesse ele, e a infeliz resolvia num
abrir e fechar de olhos a crise que a apavorava. Pois sim! Olha lá que o safado
ensinasse como se ia ao galinheiro comer os restos!... Enchia primeiro o papo
e, depois, a palitar os dentes, fazia coro com a pobreza.
–
É o diabo... Este mundo está mal organizado...
Um
monumento! Como ele, só mesmo o padre Gonçalo. Quanto maior era a miséria, mais
anediado andava.
–
Aquilo é que tem um peito! Numas brasas, com uma pitada de sal...
Mas
já Ladino ia na ponta da unha. Não queria quebrar os dentes de ninguém. Carne
encoirada, durásia... E acrescentava:
–
Isto, se uma pessoa se descuida, quando vai a dar conta está feita em
torresmos. Que tempos!
O
mais engraçado é que já falava assim há muitos anos, com um sebo sobre as
costelas, que nem cabrito desmamado.
De
tal maneira, que o Papo Magro, farto daquela velhice e daquelas manhas, a certa
altura não pôde mais, e até foi malcriado.
–
Quando é esse funeral, ti Ladino?
Mas
o velho raposão, em vez de se dar por achado, respondeu muito a sério, como se
fizesse um exame de consciência:
–
Olha, rapaz, se queres que te fale com toda a franqueza, só quando acabar o
milho em Trás-os-Montes.
______
Miguel
Torga, Bichos
(Imagem: caminhoderevolucaoblog.wordpress.com)
Nenhum comentário:
Postar um comentário