Esta é a história verdadeira de
Tenório, o galo.
Nascido duma ninhada que a senhora
Maria Puga deitou amorosamente debaixo das asas chocas da Pedrês, em doze de
Janeiro, pelas três da tarde, quando a velhota o viu sair da casca, disse logo:
- É frango.
E realmente. Aquela amostra de crista
que trazia do ovo, poucas semanas depois, parecia já uma mitra. E ninguém mais
duvidou de que era frango macho. Dos dois irmãos, muito tinhosos, sempre
enjeridos, desses é que a incerteza se manteve por largo tempo.
- Que te parece, António?
- Eu sei-te lá, mulher!...
- O da dianteira está-se mesmo a ver.
Aquelas três são pitas, com certeza. Agora estes enxalmos...
Frangos também, mas fracos. Mal viam
gavião sobre o quintal, metiam nojo:
- Piu... Piu... Piu...
Lá parava a mãe de esgadanhar.
- Piu... Piu... Piu...
Até metidos nos sovacos da
progenitora se borravam! Ele, porém, continuava ao ar livre, a desafiar o
inimigo, que planava lá no alto.
- Há-de ficar para galo!
E a sujeita tinha palavra. Em Maio,
por alturas da Ascensão, ao dar de caras com os irmãos degolados e depenados,
ainda lhe tremeu a passarinha. Olha que brincadeira! Felizmente que a dona
sabia distinguir o trigo do joio, e o deixava para semente... Um futuro bonito,
afinal! É certo que não estava nesse momento em condições de apreciar
devidamente a grandeza da sorte que lhe coubera. Muito embora a simples certeza
de viver lhe enchesse a alma duma confiança cega no porvir, só daí a algum
tempo é que viu claramente o tamanho do seu destino. Quando tal compreendeu,
cuidou que estalava de orgulho.
Foi num certo amanhecer de Outubro...
Que grande dia, esse! Ao cabo de um sono profundo, acordara cedo, ainda mal se
adivinhava a alvorada pelo buraco da fechadura. Um silêncio de comunhão. O
cheiro forte do mosto que fervia na adega, adocicado, entrava pelo corpo dentro
e punha-o a sonhar volúpias. E, no meio da mudez das coisas e daquele perfume
de levedação, começou a sentir uma tal ânsia de abrir o peito e cantar, que até
cuidou que tinha febre e delirava. Mas não. Felizmente, estava bem de saúde. A
estranha sensação que o atormentava era apenas necessidade de se expandir, de
anunciar ao mundo não sabia o quê. Aterrado, tolhido de medo e pudor, cerrou a
garganta, numa defesa instintiva. Foi o mesmo que nada. Estoirava, se impedisse
por mais tempo a saída dum hino de saudação à luz que vinha rompendo! Nenhuma
vontade conseguia açaimar o grito irreprimível que o sufocava.
E cantou:
Cá-que-rá-cá!...
Acordou tudo. Foi como se de repente
caísse um raio no galinheiro e despertasse a mãe, os irmãos e as primas. Ele
próprio, mal a voz lhe voou da boca, se pôs frio. E, à semelhança dos outros,
ficou reduzido a uma pergunta e a um pasmo. Mas não acabara sequer de entender
o que se passava, e já novo brado a sair-lhe do bico:
Cá-que-rá-cá!...
O som desta vez pareceu-lhe mais são,
mais seguro. E acariciou por momentos o desenho fino e agudo das notas que lhe
ficaram a ressoar nos ouvidos maravilhados. Repetiu:
Câ-que-rá-cá!...
Qual medo, qual pudor, qual nada! Era
ou não era um galo a valer?! Ou não via como, em toda a capoeira alvoroçada, do
espanto se passara a um rumor de pura admiração?... Na capoeira e até lá
dentro...
- Ouviste o frango, António?
- Ouvi.
Frango! Palermas! O pior é se daí a
nada, logo que a patroa abriu a porta do quinteiro, não galou ali à sua frente
a Calçuda, a madre abadessa de todo aquele gado! É verdade que foi uma galadela
à toa, a ferver, trêmula, em que nem teve a certeza de ter deixado semente no
oveiro. Mas esteve-lhe trepado em cima como um galo! Como um galo que era já,
realmente.
Frango! Seriam falsas, se calhar, as
penas doiradas que lhe almofadavam o peito, e postiços os esporões que,
desvanecido, via crescer dia a dia nas pernas lisas e musculadas?!
Frango!
Foi, de resto, a última vez que a ama
se referiu a ele sem a consideração devida. Pouco tempo depois, quando avisou a
comadre, já falou doutra maneira.
- Vê se fechas o teu galo, que eu não
quero que passe o tempo às turras com o meu!...
Ha?! Pois então! Ali, a dar a mão à
palmatória, que não tinha outro remédio! E não lhe fazia favor nenhum. Era um
galo, e não cuidasse lá o senhor borra-botas do lado que, por ser novo, lhe
havia de andar ao beija-mão toda a vida. Melhor fora! Tirava o chapéu aos mais
velhos, mas lá cornambanas, isso é que não! Agora, doesse a quem doesse, santa
paciência: ali mandava ele. E muito respeitinho! Mas o outro teimava sempre em
manter as regalias antigas, e, ao primeiro barulho que surgiu, a dona preveniu
a Teodora. Escusadamente, afinal, porque aquilo só à pancada, como teve de ser.
Por acaso estava de invernia. uma
sincelada como não havia lembrança. E nem assim o safado do vizinho teve mão no
vício! Muito agasalhado nas penas, com ar de quem vinha à bisca, apareceu no
quinteiro. Mostrara-lhe a melhor cara, evidentemente. Se queria apenas
espairecer, dar dois dedos de cavaco, entrasse e ficasse à vontade. O ladrão,
porém, pôs as unhas de fora antes de um credo. Mal acabara de lhe dar as
boas-vindas, já o bandalho chamava aos peitos a Garnisé! Cegou-se. O cabrão! E
ajustaram as contas logo ali.
Mas o patife sabia da poda. Tinha
prática, o filho da mãe! Uma girândola de bicadas facinorosas, sem errar uma. E
golpes baixos, de rufia. A matar, o bandido! Felizmente que descobriu o jogo a
tempo. E, como o primeiro milho é dos pardais, deixou-o arremeter, a desviar-se
o mais que podia. Salto adiante, salto atrás, o preciso para ir tenteando. O
outro, sem perceber a manobra, sempre de espada erguida. Mas já não era
criança. Já lhe pesava o papo. Estava aqui, estava como havia de ir.
Continuasse. Não fazia mal que o mulherio do galinheiro, deslumbrado, torcesse
pelo farçola. Bicho mulher é assim. Não há que fiar. Esperassem-lhe pela
resposta! Até ao lavar dos cestos... Um bom bocado, realmente, foi só negacear
o corpo, entreter. E, quando o pedaço de asno começou a perder o fôlego,
cansado de um quarto de hora de luta, caiu-lhe em cima como um dragão. E sem
olhar a meios! O palerma, a cuidar que levava a melhor! Ora aí tinha. Uma tosa
tamanha, que à volta houve um murmúrio de espanto. Mais quatro arrochadas, e lá
se foi levado pelo mesmo caminho, num frangalho.
Galo! Galo e duma maneira tal, que
agora no quinteiro, mal franzia a testa, tremia tudo! E então lindo! A crista
caía-lhe dobrada sobre o ouvido. Um rico brinco de cada lado. E em todo o
peito, sobre o papo redondo, um avental de penas que pareciam de pavão! Sem
falar nas asas, um primor de beleza, nos esporões que, de brancos, lembravam marfim,
e naquela rica voz, legítimo orgulho da dona.
- Muito bem canta o seu galo, Ti
Maria!
- Nem há...
Vaidoso e seguro de si, como é
natural, já não cantava só ao amanhecer. Cantava ao dar a meia-noite, às tantas
da manhã, e várias vezes pelo dia fora.
À meia-noite, era por simples
exibição. Àquela hora, gostava de lançar no silêncio recolhido do lugarejo o
seu grito escarolado e subversivo. Fraquezas terrenas... Aproveitava a
circunstância de toda a gente dormir, para tocar a sentido. E os mortos, claro,
ressuscitavam!
De madrugada, abria o peito por grata
fidelidade ao amanhecer longínquo em que acordara com a vida a bater-lhe nos
sentidos. Não tinha mais consoladora recordação na memória... E festejava-a
religiosamente.
Pelo dia adiante, entoava o bendito
por motivos particulares... Ah, ele bem sabia que não devia fazer aquilo! Que é
feio servir-se a gente dos seus dons naturais para desinquietar lares alheios.
Por via disso dera no vizinho a coça que o levara à sepultura, e arranjava
sarilhos a cada momento. De mais a mais não tendo necessidade. Quinze mulheres
no harém... Que diabo! Mas um homem não se manda fazer. Natureza desgraçada, a
sua! Não se fartava! E, quando em casa já tudo se desviava do seu andar de
lado, não havia outro remédio senão fazer chegar lá fora um grito de fome. De
resto, também gostava de variar... Sabia-lhe pela vida uma extravagância!
- É danado, o seu galo! Onde não
chega, manda. Leva as frangas cá do povo a eito...
Era a Júlia Pirraças a falar à dona.
Ele ouvia com ar modesto. Por dentro, a babar-se, evidentemente. Quem é que não
gosta que lhe louvem as valentias?... Ah, se não fosse o espinho que começava a
crescer-lhe no coração!...
- E tenho aí um filho que não lhe
há-de ficar atrás...
O espinho. Entusiasmada com aquela virilidade,
a velha lembrara-se de lhe aproveitar a casta. Andava a criar um cachopo da
penúltima ninhada. E não é que o fedelho crescia e prometia?! Raios partissem a
sorte! Quando tudo lhe corria às mil maravilhas - fartura, saúde e paz de
espírito - aquilo! Claro: passou a empreender no caso, a afligir-se. Cumpria as
obrigações, cantava, dava o seu dedo de conversa, mas às duas por três lá vinha
a mortificação. Por mais que tentasse disfarçar, não havia maneira.
- O galo velho tem coisa...
Galo velho! Isto é que era uma
vida!... Andava um homem sabe Deus como, roído por dentro, não lhe apetecia
arreganhar os dentes, e logo uma sentença sem apelo: - galo velho! Parece que
não dera motivos a ninguém para semelhante juízo?!... O mulheredo continuava a
aninhar-se mal o via dar meia volta sobre a asa, e ainda nenhuma se queixara de
falta de assistência. Pelo menos, que lhe constasse. A não ser que alguma sirigaita...
Teria a dona surpreendido qualquer pouca vergonha? Precisava de arregalar os
olhos.
- Mata-se, e faz-se um bolo. O filho
já dá conta do recado...
Era o senhor menino, então, que
começava a pôr as unhas de fora! Ah, mas saía-lhe cara a brincadeira! Oh, se
saía! Garoto! Um chafedes, ainda com os cueiros agarrados ao rabo, e a fazer-se
fino! Ele que o apanhasse com a boca na botija!...
Passou a vigiar o rapaz dia e noite,
mordido duns ciúmes de morte. Mas nada conseguiu descobrir. Durante o resto do
verão, não teve a menor razão de queixa. O moço portava-se na linha. E pôde
respirar com mais sossego.
Ora justamente em Outubro, fazia três
anos que se estreara, desabou a trovoada. Acordara para tocar a alvorada. O
mesmo silêncio profundo enchia a noite, e o mesmo cheiro forte de mosto toldava
tudo. E, ao abrir a garganta, rompe a seu lado um canto tão cristalino e tão
puro, que se calou.
- Ouviste o frango?
- Ouvi.
Não havia dúvida nenhuma: a formiga
tinha catarro. Ou cortava o mal pela raiz, ou estava perdido.
A manhã vinha a romper e, com a luz
do dia, a casa movimentou-se. Às tantas, a velha começou a afiar a faca no
alguidar.
Quê? Seria possível?! O raio da
mulher teria alma de o degolar?!
Mas ele ainda a pôr o caso em teoria,
e já ela a deitar-lhe as mãos.
- Cá-que-rá-cá!...
O filho, outra vez. Aquele maldito
filho, que a dona não depenara juntamente com os outros irmãos.
______
Miguel
Torga, Bichos
(Imagem: clasf.com.br)
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