O pai queria
fazer dele um homem. Por isso, mal o pequeno acabou a 4.ª classe em Pedornelo,
Guimarães com ele!
Mas não
havia padre Macário capaz de endireitar semelhante criatura. Nem a puxões de
orelhas e a golpes de régua se conseguia evitar que o rapaz saltasse a toda a
hora pelas janelas do colégio e desaparecesse pelas serras a cabo, aos grilos.
Trazia já o vício da terra; mas, com a idade, em vez de a coisa melhorar,
piorava.
De palha na
mão, era vê-lo à torreira do sol. Metia a sonda em cada agulheiro que
encontrava, punha-se a esgravatar, a esgravatar, e o pobre do habitante do
buraco não tinha outro remédio senão vir à tona.
Só quando o
estômago dava horas das grandes regressava a casa com vinte ou trinta bichos
daqueles. O reitor mandava-o ir ao gabinete, punha-lhe a cara num pimentão, mas
de pouco valia. No dia seguinte, lá fugia ele outra vez.
Tinha o
quarto transformado em viveiro. Em vez de retratos de actrizes e de cowboys,
gaiolas de todos os tamanhos dependuradas nas paredes, com folhas de alface e
de serradela metidas nas grades. E era num tal cenário que o prefeito o
encontrava - quando o encontrava -, abstracto, alheado, fora do mundo.
– A lição?
– Estou a
estudá-la...
Na aula a
seguir é que a coisa se via: um estenderete!
Contudo,
como inexplicavelmente na cadeira do Dr. Rodrigues só tirava vintes, e o
professor gorava de grande prestígio entre os colegas, ano sim, ano não, lá
passava. A nota de Zoologia podia muito. E os outros mestres, apertados, davam
o 10 e desabafavam:
– Vá lá...
Como sabe tanto de grilos...
. No fim do
curso do liceu, Coimbra. Para médico. O pai sonhava com ele em Pedornelo a
curar maleitas.
Mas quando,
ao cabo de seis anos, o velho julgava que tinha ali o Paracelso dos Paracelsos,
a folha corrida do rapaz registava apenas uma enigmática distinção em ciências
naturais e reprovações no resto.
Deus não
quis, todavia, matar o santo homem com a punhalada duma desilusão. Nas vésperas
de o cábula regressar, mandou-lhe piedosamente uma broncopneumonia, que o levou
desta para melhor, juntamente com as esperanças que depositara no filho.
E foi assim,
herdeiro das ricas terras do pai, e com a Arca de Noé sabida de cabo a rabo,
que o Sr. Nicolau voltou definitivamente a Pedornelo.
Andava então
pelos trinta anos. Alto, seco, pálido, delicado, veio pôr na veiga e nos montes
da terra uma nota que até ali não havia: a mancha lírica dum cidadão de
guarda-sol branco a caçar bicharocos.
– O Sr.
Nicolau passou bem?
– Bem, muito
obrigado, tio Armindo...
E abaixava-se
a agarrar uma louva-a-deus. Tirava um frasco do bolso, pegava na infeliz com
mil cuidados, não lhe fosse quebrar um braço, e bojo do vidro com ela.
A princípio,
todos arregalaram os olhos, num justo e desconfiado espanto. No que dera o
filho do Sr. Adriano Gomes! Mas apenas lhes arrendou, por umas cascas de alho,
os bens de que passara a ser dono, e o viram contente com a transacção, mudaram
de ideias e puseram-se a vender-lhe quantos insectos havia nas redondezas.
Bastava chegar ao pé dele e mostrar-lhe uma joaninha, para que a comprasse logo
por um tostão. De modo que semelhante maluqueira era uma mina, vista por
qualquer lado.
Só o
mestre-escola, o velho Sr. Anselmo, que já na instrução primária se vira e
desejara para meter naquela cabeça tonta as contas de multiplicar, se mostrava
renitente na aceitação de tão grande desgraça. E, quando acabou por dar o braço
a torcer, foi desta maneira:
– Enfim, do
mal o menos. Se lhe dá para coleccionar burros, tínhamos a aldeia transformada
numa estrebaria...
Mas o Sr.
Nicolau resistia a tudo. Às ironias do antigo professor e ao egoísmo do povo.
E, mal o sol apontava na serra de Alijó, lá ia ele pelos restolhos fora.
Vivia
sozinho. Além da Gertrudes, que vinha de vez em quando lavar-lhe a roupa e
fazer-lhe um caldo, ninguém mais lhe entrava em casa, a não ser pelo S. Miguel,
na altura do pagamento das rendas. Viam-no então no escritório, entre grandes
armários, onde, desde as pulgas às carochas, dormiam o sono eterno quantos
seres a sua paciência e os seus vinténs conseguiram agarrar em Pedernelo e
cercanias.
Tinha-os em
caixas de papelão, aos centos, em fila, catalogados e suspensos num alfinete
que lhes entrava nas costas e saía na barriga. Havia-os de todos os tamanhos e
de todas as cores possíveis. Grandes, pequenos, pequeninos, amarelos, brancos,
pretos, azuis, vermelhos, um ou dois de cada qualidade e de quantas qualidades
fora capaz a imaginação divina.
Calmamente,
amorosamente, à medida que o tempo andava, crescia o cemitério. E, calmamente,
o coveiro, o Sr. Nicolau, ia envelhecendo entre os mortos.
O seu mundo
fechara-se ali, concêntrico, sem horizontes, murado pelas estantes
envidraçadas, onde o sonho se conservava em naftalina. As nações desabavam,
sucediam-se guerras, a própria aldeia oscilava nos gonzos. Mas o senhor
Nicolau, alheio às paixões humanas, continuava a povoar os dias de libélulas e
borboletas.
A certa
altura, o boateiro do Fagundes lançou a atoarda do próximo casamento do
lunático.
– E com
quem? - perguntou o professor, carregado de inocência.
Mas como
ninguém lhe soube dizer o nome da noiva, rematou ele:
– Talvez com
alguma lesma... E bem é. Fica tudo em família.
A balela foi
por assim dizer o derradeiro sinal que Pedornelo deu de que não se esquecera
inteiramente da vida social do Sr. Nicolau. Porque, apenas o mestre disse a
ironia, e todos acabaram de se rir à vontade, o desgraçado saiu da lembrança da
povoação. Logo a seguir, quando passavam, ou já nem o cumprimentavam, ou lhe
davam os bons-dias com o mesmo automatismo com que tiravam o chapéu, às
Trindades. Nem que ele atravessasse o largo com uma ruga funda e desesperada na
testa, se lembravam de o lamentar. O nome do amalucado, agora, significava o
mesmo que carrapato, ralo, formiga ou coisa assim.
Era um
bicho. Um inofensivo bicho, igual aos milhares quê tinha no escritório
embalsamados.
Às
vezes, a ruga tinha profundidade. Minava-o um desgosto tão verdadeiro como o de
qualquer vizinho aflito com os estragos de uma trovoada. Mas cinquenta anos de
alheamento colectivo tiravam-lhe o direito de ser compreendido por homens. Quem
podia admitir que fossem motivo de desespero a tenaz quebrada dum besoiro ou
qualquer sinal de traça numa bicha-cadela?! A sensibilidade de Pedornelo não
reagia aos estímulos de tão subtis calamidades. Ali, a respeito de sofrimento,
entender, só fome, febres e facadas.
Quis
finalmente o Dr. Saul olhar aquele ser como habitante da terra e criatura de
Deus. Chamado à pressa pela Gertrudes, que fora encontrar o velho encolhido
como um feto no sofá do escritório, veio, auscultou, tomou o pulso, pôs o
termómetro, e resolveu por fim entrar pelo corpo dentro do moribundo com uma
agulha que lhe enterrou na espinha.
Mas o sr.
Nicolau, agora, estava de todo integrado no destino dos seus companheiros.
Delirava. Sentiu vagamente a dor na coluna, lembrou-se do que tinha feito aos
milhares de irmãos, e pensou:
– Má
técnica... Era éter acético primeiro, e só então... Oxalá não se esqueça ele ao
menos de escrever no rótulo, correctamente, o meu nome em latim...
E daí a
nada, depois da última contracção, sereno e de olhos fechados, ali ficou quieto
e feliz, à espera que o metessem na sua caixa.
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Miguel
Torga, Bichos
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