quinta-feira, 26 de abril de 2012

Contos Portugueses 13 - O senhor Nicolau


O pai queria fazer dele um homem. Por isso, mal o pequeno acabou a 4.ª classe em Pedornelo, Guimarães com ele!
Mas não havia padre Macário capaz de endireitar semelhante criatura. Nem a puxões de orelhas e a golpes de régua se conseguia evitar que o rapaz saltasse a toda a hora pelas janelas do colégio e desaparecesse pelas serras a cabo, aos grilos. Trazia já o vício da terra; mas, com a idade, em vez de a coisa melhorar, piorava.
De palha na mão, era vê-lo à torreira do sol. Metia a sonda em cada agulheiro que encontrava, punha-se a esgravatar, a esgravatar, e o pobre do habitante do buraco não tinha outro remédio senão vir à tona.
Só quando o estômago dava horas das grandes regressava a casa com vinte ou trinta bichos daqueles. O reitor mandava-o ir ao gabinete, punha-lhe a cara num pimentão, mas de pouco valia. No dia seguinte, lá fugia ele outra vez.
Tinha o quarto transformado em viveiro. Em vez de retratos de actrizes e de cowboys, gaiolas de todos os tamanhos dependuradas nas paredes, com folhas de alface e de serradela metidas nas grades. E era num tal cenário que o prefeito o encontrava - quando o encontrava -, abstracto, alheado, fora do mundo.
A lição?
Estou a estudá-la...
Na aula a seguir é que a coisa se via: um estenderete!
Contudo, como inexplicavelmente na cadeira do Dr. Rodrigues só tirava vintes, e o professor gorava de grande prestígio entre os colegas, ano sim, ano não, lá passava. A nota de Zoologia podia muito. E os outros mestres, apertados, davam o 10 e desabafavam:
Vá lá... Como sabe tanto de grilos...
. No fim do curso do liceu, Coimbra. Para médico. O pai sonhava com ele em Pedornelo a curar maleitas.
Mas quando, ao cabo de seis anos, o velho julgava que tinha ali o Paracelso dos Paracelsos, a folha corrida do rapaz registava apenas uma enigmática distinção em ciências naturais e reprovações no resto.
Deus não quis, todavia, matar o santo homem com a punhalada duma desilusão. Nas vésperas de o cábula regressar, mandou-lhe piedosamente uma broncopneumonia, que o levou desta para melhor, juntamente com as esperanças que depositara no filho.
E foi assim, herdeiro das ricas terras do pai, e com a Arca de Noé sabida de cabo a rabo, que o Sr. Nicolau voltou definitivamente a Pedornelo.
Andava então pelos trinta anos. Alto, seco, pálido, delicado, veio pôr na veiga e nos montes da terra uma nota que até ali não havia: a mancha lírica dum cidadão de guarda-sol branco a caçar bicharocos.
O Sr. Nicolau passou bem?
Bem, muito obrigado, tio Armindo...
E abaixava-se a agarrar uma louva-a-deus. Tirava um frasco do bolso, pegava na infeliz com mil cuidados, não lhe fosse quebrar um braço, e bojo do vidro com ela.
A princípio, todos arregalaram os olhos, num justo e desconfiado espanto. No que dera o filho do Sr. Adriano Gomes! Mas apenas lhes arrendou, por umas cascas de alho, os bens de que passara a ser dono, e o viram contente com a transacção, mudaram de ideias e puseram-se a vender-lhe quantos insectos havia nas redondezas. Bastava chegar ao pé dele e mostrar-lhe uma joaninha, para que a comprasse logo por um tostão. De modo que semelhante maluqueira era uma mina, vista por qualquer lado.
Só o mestre-escola, o velho Sr. Anselmo, que já na instrução primária se vira e desejara para meter naquela cabeça tonta as contas de multiplicar, se mostrava renitente na aceitação de tão grande desgraça. E, quando acabou por dar o braço a torcer, foi desta maneira:
Enfim, do mal o menos. Se lhe dá para coleccionar burros, tínhamos a aldeia transformada numa estrebaria...
Mas o Sr. Nicolau resistia a tudo. Às ironias do antigo professor e ao egoísmo do povo. E, mal o sol apontava na serra de Alijó, lá ia ele pelos restolhos fora.
Vivia sozinho. Além da Gertrudes, que vinha de vez em quando lavar-lhe a roupa e fazer-lhe um caldo, ninguém mais lhe entrava em casa, a não ser pelo S. Miguel, na altura do pagamento das rendas. Viam-no então no escritório, entre grandes armários, onde, desde as pulgas às carochas, dormiam o sono eterno quantos seres a sua paciência e os seus vinténs conseguiram agarrar em Pedernelo e cercanias.
Tinha-os em caixas de papelão, aos centos, em fila, catalogados e suspensos num alfinete que lhes entrava nas costas e saía na barriga. Havia-os de todos os tamanhos e de todas as cores possíveis. Grandes, pequenos, pequeninos, amarelos, brancos, pretos, azuis, vermelhos, um ou dois de cada qualidade e de quantas qualidades fora capaz a imaginação divina.
Calmamente, amorosamente, à medida que o tempo andava, crescia o cemitério. E, calmamente, o coveiro, o Sr. Nicolau, ia envelhecendo entre os mortos.
O seu mundo fechara-se ali, concêntrico, sem horizontes, murado pelas estantes envidraçadas, onde o sonho se conservava em naftalina. As nações desabavam, sucediam-se guerras, a própria aldeia oscilava nos gonzos. Mas o senhor Nicolau, alheio às paixões humanas, continuava a povoar os dias de libélulas e borboletas.
A certa altura, o boateiro do Fagundes lançou a atoarda do próximo casamento do lunático.
E com quem? - perguntou o professor, carregado de inocência.
Mas como ninguém lhe soube dizer o nome da noiva, rematou ele:
Talvez com alguma lesma... E bem é. Fica tudo em família.
A balela foi por assim dizer o derradeiro sinal que Pedornelo deu de que não se esquecera inteiramente da vida social do Sr. Nicolau. Porque, apenas o mestre disse a ironia, e todos acabaram de se rir à vontade, o desgraçado saiu da lembrança da povoação. Logo a seguir, quando passavam, ou já nem o cumprimentavam, ou lhe davam os bons-dias com o mesmo automatismo com que tiravam o chapéu, às Trindades. Nem que ele atravessasse o largo com uma ruga funda e desesperada na testa, se lembravam de o lamentar. O nome do amalucado, agora, significava o mesmo que carrapato, ralo, formiga ou coisa assim.
Era um bicho. Um inofensivo bicho, igual aos milhares quê tinha no escritório embalsamados.
Às vezes, a ruga tinha profundidade. Minava-o um desgosto tão verdadeiro como o de qualquer vizinho aflito com os estragos de uma trovoada. Mas cinquenta anos de alheamento colectivo tiravam-lhe o direito de ser compreendido por homens. Quem podia admitir que fossem motivo de desespero a tenaz quebrada dum besoiro ou qualquer sinal de traça numa bicha-cadela?! A sensibilidade de Pedornelo não reagia aos estímulos de tão subtis calamidades. Ali, a respeito de sofrimento, entender, só fome, febres e facadas.
Quis finalmente o Dr. Saul olhar aquele ser como habitante da terra e criatura de Deus. Chamado à pressa pela Gertrudes, que fora encontrar o velho encolhido como um feto no sofá do escritório, veio, auscultou, tomou o pulso, pôs o termómetro, e resolveu por fim entrar pelo corpo dentro do moribundo com uma agulha que lhe enterrou na espinha.
Mas o sr. Nicolau, agora, estava de todo integrado no destino dos seus companheiros. Delirava. Sentiu vagamente a dor na coluna, lembrou-se do que tinha feito aos milhares de irmãos, e pensou:
Má técnica... Era éter acético primeiro, e só então... Oxalá não se esqueça ele ao menos de escrever no rótulo, correctamente, o meu nome em latim...
E daí a nada, depois da última contracção, sereno e de olhos fechados, ali ficou quieto e feliz, à espera que o metessem na sua caixa.
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Miguel Torga, Bichos
(Imagem: blogdaleilucha.blogspot.com )

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