segunda-feira, 23 de abril de 2012

Contos Portugueses 10 - Ramiro


Deus nos dê muito bons dias!
– Han...
Quem passava até mudava de cor. Fazia-se-lhe a alma pequena só de ouvir em tal ermo uma resposta assim. É que metia medo!
Felizmente que não se tratava de ladrão. Ramiro, depois daquela salvação dada por entre os dentes, deixava-se ficar quieto, bambo, apoiado na foice roçadoira, com os olhos baços parados sobre a brancura do rebanho. Ramiro era pastor.
Aos domingos, no adro da Igreja, o Manuel Pelinhas, que tinha o coração na boca, mais de uma vez lhe foi à mão.
A modos que te custam dinheiro as palavras!...
Mas Ramiro, depois de cada remoque, continuava calado, e calado ouvia o padre João rezar missa. No fim, se havia ladainha, não respondia; se do altar vinha ordem para os homens cantarem no Tantum Ergo, não cantava.
A alma enchera-se-lhe de silêncio em vinte anos de Marão. Naquela grande aridez, só a vida que pulsava sem ruído conseguia triunfar. A chamiça, a carqueja, o tojo molar, as lagartixas, as cobras e os saltaricos cresciam no mesmo cauteloso mutismo. No Março, a torga floria. Mas não chegava esse alarido de cor para acordar as fragas. E a lição que Ramiro recebia diariamente era a de uma irremediável afonia cósmica, de vez em quando quebrada pelo balido monossilábico dum cordeiro que se ficava esquecido a olhar um seixo, ou pelos uivos do Rilha que, pressuroso, dava sinais de lobo. Por isso, em vez de fala, usava outra linguagem: um assobio seco, estridente, instantâneo, que atirava com a mesma violência à cara dos interlocutores e às reses tresmalhadas. O apito, saído dos beiços com o ímpeto dum arremesso, entrava nos ouvidos como um punhal. Quase que fazia sangrar os tímpanos.
E queres tu, com esse chamadoiro, que a Rosa te venha ao redil!
Queria, realmente. Quando passava por ela, comia-a com os olhos. Desgraçadamente, não sabia formular doutra maneira o desejo que o roía. E, por mais que a Mãe lhe preparasse o terreno, continuava solteiro, à míngua de expressão.
Pela manhã, erguia-se antes do próprio laboreiro. Mas nem pedia a bênção à pobre tia Etelvina, que considerava aquele filho um castigo de Deus, nem dava bons dias ao rebanho. Um assobio apenas. E com ele avisava a velha e os cordeiros de que eram horas. A infeliz vinha entregar-lhe a merenda, e o gado punha-se de perna alerta. De aí a nada, a procissão estava em andamento a caminho do Marão o deserto do som. E sozinho. De livre vontade, nunca emparceirava. A regra era ir sempre desacompanhado, mesmo que levasse o gado até aos confins da serra.
Haverá pasto na Gralheira?
Han...
Nada mais. Quem quisesse, fosse ver. Continuava distante, absorto, de beiços cosidos. Se acontecia encontrar-se com outros colegas na mesma encosta, e não conseguia arredar-se, ou lhe não convinha, deixava-se ficar sem abrir a boca, como se não desse sequer pela presença do intruso.
Assim sucedeu naquele dia. O Ruela apareceu, e os malatos que andava a engordar entraram de repelão pelo rebanho dele. Não tugiu nem mugiu. E nessa situação se manteve horas a fio, até que a desgraça se deu. Mesmo depois, no remate da tragédia, nada disse. À justificação do Ruela, respondeu com maior dureza no olhar. E, quando levantou a foice, foi também em silêncio, como se fosse cumprir um voto.
À salvação, que não lhe quis acertar!
Mas Ramiro estava perdido. A Mimosa era a mais bela ovelha de Arcã. E vê-la assim, estendida e morta, ia além das forças da sua compreensão.
Acredita que o fiz sem querer!
O coitado do Ruela, ao tornar o gado, puxou demais à mão. O certo é que tal pedrada mandou à barriga da cordeira, que a desgraçada, prenha como uma vaca, abortou e morreu. Não foi logo na ocasião. Só passadas algumas horas é que se pôs a berrar, a berrar, num desespero que parecia de criatura. A berrar e a escoar-se em sangue.
Enquanto durou a agonia, Ramiro apertava o cabo da foice, numa raiva açaimada. A própria vermelhidão que lhe alastrava nos olhos mostrava esse esforço de contenção. Infelizmente, deu-se o pior... O coração da churra, às tantas, parou de bater. E não teve mão no génio.
Pela alma de quem lá tens, Ramiro!
O apelo, de ilimitada angústia, saiu com o fervor de uma oração do peito opresso do condenado. Mas a lâmina vinha no ar como um destino. E o grito de terror não encontrou eco. Vogou incerto pela serra além, e perdeu-se a seguir numa quebrada. A eternidade de tal instante tinha de ser assim, para que Ramiro estivesse certo consigo. A sua alma era muda como um túmulo. No instante em que a foice ia cair em cheio na cabeça do Ruela, os próprios montes pareceram siderados de espanto. Simplesmente, mais do que nunca, agora, a boca de Ramiro estava fechada. Larga e fina, lembrava um longo golpe cicatrizado. No rosto maciço, falar, só os olhos abertos. Inteiramente em sangue, apenas eles exprimiam uma determinação sem remédio, feroz, onde não havia lugar para nenhum perdão.
E, sobre a morte inocente daquele homem, apenas se ouviu, num instante fugidio, um assobio seco, agudo, a chamar o rebanho para o curral.
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Miguel Torga, Bichos
(Imagem: johrezende.blogspot.com)

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