Ela sabia que a entrada daquele homem pela porta de sua casa não era uma coisa banal. Não chegava a ser um terremoto, mas se preparava para alguns deslocamentos geológicos na sua alma. Diria que ela propiciava que isto acontecesse, como se ali fosse se cumprir um ritual. E seria bom que ele soubesse disto, que as pessoas não deviam entrar numa vida, numa casa e consequentemente num corpo de maneira desatenta e egoísta. A casa é lugar de permanência, mais que motel ou hotel. Exige cumplicidades mais delicadas.
Contudo, precavida quanto a essa noção de permanência, sabendo que a vida às vezes é um deserto por onde passam caravanas e tuaregues, admitiu que já seria bom se a casa se convertesse num oásis.
Os primitivos sabem melhor que nós, pretensos civilizados, que estabanadamente banalizamos tudo, que o ritual é que dá sentido aos fatos. Mínimos gestos ou certos instantes podem se tornar históricos se estiverem entranhados desse ritmo denso de adágio que tem os rituais.
Cruzar um umbral, a soleira, ultrapassar um limite são coisas graves.
Porque uma coisa é o ver, o aproximar-se, o apertar a mão, dar um sorriso e se tocar progressivamente procurando intimidade. Mais do que ocupar espaços, isto é ir povoando espaços. Externamente é quando os amantes vão se ampliando, se alongando e habitando conjuntamente o que é público: o cinema, o restaurante, a caminhada na praça ou praia. Mas, de repente, estar na casa, na sala, no quarto, no toalete do outro, ver as roupas dependuradas nos cabides, a escova e os grampos na bancada junto à pia, os vidros de perfume, aqueles objetos de decoração na mesa da sala, cinzeiros de prata, uma escultura da Polinésia ou cópia de uma santa barroca, isto, convenhamos, é estar com a alma exposta.
É como abrir portas, janelas e gavetas. Há o inesperado. E as pessoas e casas, o que são senão gavetas dentro de gavetas, caixas dentro de caixas? Então, ir se aproximando de alguém, penetrar no espaço físico onde a figura amada habita é ir, como na estrutura da caixa chinesa, que tem outra caixa menor, que contém outra menor, que contém outra menor ainda, que contém outra e outras, até, enfim, chegar ao letente coração do outro.
Essa mulher está rodeada de objetos que tiveram outra história, outras histórias. E durante algum tempo, como se estivesse num luto secreto, adiou reinaugurar o leito, reencenar os gestos, esperar que outro homem fizesse brotar nela arrebatamentos em insuspeitadas regiões de seu corpo.
Até os objetos se deram conta que ela está oferecendo algo muito delicado. Daí uma cumplicidade entre os objetos da casa e o corpo dessa mulher. Eles também esperam que esse homem venha como um cauteloso conquistador. Há uma expectativa no ar, a cômoda barroca guarda em suas volutas e elipses alguma tensão, o abajur emana uma contida luz e os tapetes parecem reanimar ternuras. Enfim, os objetos estão conscientes de seu papel de coadjuvantes.
Se ele, em vez da delicadeza do gato que é capaz de passar por taças de cristal sem quebrá-las, for do tipo invasor, um godo ou visigodo, que não controla os limites de seu corpo e fala preenchendo tudo egocêntrica e desatentamente, então ocorrerá uma inapelável ruptura, a profanação do instante.
Ela gostaria que ele chegasse como o viajante que vindo de longe, no entanto, fala a sua língua. Alguém que não extrapolasse do presente nem invadisse seu passado e futuro. Que passado e futuro são coisas que competem e ela doar, quando e a quem os merecer.
Ela o quer nos limites para os quais está preparada agora.
Ela gostaria que ele chegasse com a virilidade suave de um anjo. E que quando despertasse no dia seguinte tivesse aquela sensação do mito antigo, de que um deus dormiu lá em casa. Tranquila era veria que a casa e todos os objetos estariam em ordem. Só que encantados. Encantados como ela, que encantada sai para um novo dia com o sorriso de posse e confiança.
E se ela olhasse para trás veria que os objetos da casa a contemplam cúmplices e igualmente felizes.
(Affonso Romano de Sant`Anna, in: Tempo de delicadeza)
(Imagem:es.123rf.com)
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